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Judicialização da saúde: vamos falar sobre boa-fé?

Angélica Carlini
Advogada, Docente do ensino superior e Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual – IBDCONT.

Os números de judicialização na saúde pública e privada triplicaram de 2009 a 2017 segundo dados da pesquisa realizada pela Insper e apresentada em 2019. ¹

Planos de saúde e seguros saúde são os temas mais discutidos nos processos judiciais em primeira e segunda instância, segundo dados da mesma pesquisa. E os temas mais demandados são o fornecimento de medicamentos, próteses, órteses e meios auxiliares, exames e procedimentos. Relata a pesquisa, ainda, que “parte desses processos recai sobre procedimentos e medicamentos não previstos nos contratos das operadoras de saúde nem pela política pública, muitas vezes com alto custo para o erário e sem eficácia comprovada.”

Importante ressaltar que se há impacto de alto custo para o erário, também há impacto para a saúde suplementar com repercussão nos valores finais que o usuário paga em sua mensalidade.

A estrutura da saúde suplementar é fundada no mutualismo, sistema por meio do qual todos contribuem para que algumas pessoas possam utilizar ao longo de um determinado período de tempo.

O valor das mensalidades pagas pelos usuários é utilizado para custeio de duas modalidades de despesas: (i) despesas assistenciais, ou seja, tudo o que está previsto na lei e no contrato como sendo direito para os usuários – exames, consultas, procedimentos e eventos em saúde previstos no rol da ANS -; e, (ii) despesas administrativas da operadora de saúde e remuneração do capital investido na atividade empresarial.

Os processos judiciais quando são julgados procedentes representam despesas assistenciais que serão pagas pelo fundo mutual, ou em outras palavras, todos os usuários pagarão as despesas decorrentes da sentença judicial proferida. O sistema mutual tem essa grande vantagem: todos pagam para que os que necessitam utilizem; e, ao mesmo tempo, implica na responsabilidade de que todos utilizem com racionalidade e cuidado para que os custos não impactem nos próprios usuários e representem aumento no valor das mensalidades.

A expectativa do setor é que a judicialização cresça no período pós pandemia porque há atendimentos represados, de pessoas que em razão do isolamento social não realizaram exames, consultas ou acompanhamento adequado de seu quadro de saúde. O acúmulo no atendimento previsto para os próximos meses poderá repercutir de forma negativa para o setor de saúde suplementar e, em consequência, provocar maior número de processos judiciais.

As operadoras de saúde e seus usuários se relacionam por meio de contratos que, obrigatoriamente, precisam ser assinados entre eles para que se garanta aos usuários o direito de utilizar e, a operadora o direito de receber os valores das mensalidades.

Contratos dessa natureza não representam, no entanto, apenas direitos. Também significam que ambas as partes assumem deveres, umas com as outras e no caso das operadoras de saúde também deveres que os usuários assumem uns em relação aos outros, em face da estrutura mutual que sustenta o setor.

Um dos principais deveres dos contratos de saúde suplementar é a boa-fé. E o que significa isso? Trata-se de um princípio jurídico muito simples e acessível ao entendimento de todos: é o dever de agir com honestidade, probidade e, cooperação para que o contrato respeite os interesses legítimos e legais das partes contratantes.

Boa-fé é um princípio jurídico essencial para contratos como os de saúde suplementar, que têm por principal característica o fato de que a conduta das partes é essencial para que o contrato atinja seus objetivos. Assim também são os contratos de locação, de compra e venda e tantos outros da vida cotidiana. Se as partes não agirem de boa-fé em sua conduta antes, durante e depois do contrato os resultados não serão atingidos e, certamente, uma das partes terá prejuízo.

No caso da saúde suplementar o dever de boa-fé das partes é ampliado em razão da existência do fundo mutual, composto pelo pagamento da mensalidade de todos os usuários para que os valores sejam utilizados no custeio de procedimentos e eventos de saúde fixados na lei e nos contratos firmados entre as partes.

Assim, na saúde suplementar as partes têm dever de agir de boa-fé uma em relação às outra – usuário e operadora de saúde -, mas, também ambas em relação ao fundo mutual com objetivo de preservá-lo, protege-lo, evitar que seus recursos sejam utilizados de forma indevida para que não seja afetada sua sustentabilidade.

No âmbito da saúde pública a Constituição Federal garante o direito de acesso universal e igualitário que pode ser interpretado como direito de tudo para todos, mediante políticas sociais e econômicas como está expressamente disposto no artigo 196 e, também no parágrafo 1º, do artigo 2º da Lei n.º 8.080, de 1990, que criou o Sistema Único de Saúde – SUS.

Nos contratos de saúde suplementar os direitos dos usuários são diferentes! Em razão do caráter suplementar ou complementar da saúde privada, paga pelos usuários, eles têm direito a tudo o que estiver previsto na Lei n.º 9.656, de 1998 e, àquilo mais que tiver sido contratado entre as partes. Haverá um custo para o plano referência (com a cobertura de atendimento prevista na Lei n.º 9.656, de 1998, e mais comumente identificado como rol da ANS) e, haverá um custo maior para os contratos que cubram os procedimentos e eventos do rol da ANS e outros mais que as partes tenham pactuado.

Um exemplo simples é o atendimento em home care, ou seja, o atendimento hospitalar em casa. Não há previsão no rol de procedimentos e eventos em saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS para essa cobertura nos contratos que tenham por objeto o plano de referência criado e administrado pela agência reguladora. Ou seja, se o plano de saúde do usuário garantir os procedimentos e eventos em saúde do rol da ANS, não terá direito a utilizar serviços de home care, ainda que o médico recomende. O usuário terá que custear esses serviços com seus próprios recursos.

Existem operadoras de saúde que oferecem a possibilidade de contratação desses serviços além daqueles obrigatoriamente garantidos no rol da ANS. O usuário pode pagar uma mensalidade maior e utilizar serviços de home care caso venha a precisar deles.

O rol de procedimentos e eventos em saúde fixado pela ANS é chamado de referência por esse motivo, ou seja, porque é possível contratar procedimentos e eventos além desses desde que o usuário pague por isso em sua mensalidade.

Quando o usuário não contratou o direito de utilizar home care ou, qualquer outro procedimento ou evento em saúde e precisa utilizar, é correto requerer na justiça esse acesso para um direito que não foi contratado?

Essa é uma pergunta a ser respondida à luz da boa-fé para com o fundo mutual, dever dos usuários e das operadoras de saúde.

Há um senso comum entre as pessoas de que os pedidos judiciais quando deferidos são custeados diretamente pela operadora de saúde. Isso é um grande engano.

Por se tratar de pedido judicial para despesas assistenciais o custo é pago pelo fundo mutual, composto como já afirmado aqui, por mensalidades pagas por todos os usuários. Em outras palavras, os usuários que vão à justiça e conseguem direitos que não estavam previstos na lei ou no contrato, oneram o fundo mutual e, consequentemente, outros usuários como eles próprios.

Mas quando o poder judiciário decide favoravelmente ao usuário individual não é o mesmo que afirmar que aquele requerimento é justo? É uma questão de interpretação aplicada pelo judiciário para atender a necessidade do usuário individualmente identificado no processo. Mas, o judiciário não afirma na decisão que é justo que o fundo mutual custeie um procedimento que não está previsto na lei ou no contrato. Ele decide apenas o caso concreto e, por vezes, ignora a repercussão negativa daquele procedimento não contratado ou não amparado pela lei para todos os usuários que compõem o fundo mutual.

A situação do magistrado é complexa. Como dizer não àquele que pede procedimentos de saúde que, por vezes, são importantes para a preservação da vida? Por outro lado, a decisão que ignora as regras do contrato e da lei específica que regula os planos de saúde, onera usuários que terão que pagar valores mais altos na renovação dos contratos em razão do custeio de procedimentos para os quais o fundo mutual não havia previsto recursos.

A judicialização é ruim para todos: poder judiciário, usuários, operadoras de saúde e agência reguladora. Outros meios de solução de conflitos precisam ser utilizados com urgência, para que os usuários deixem de ser onerados com custeio de procedimentos não previstos na lei ou nos contratos.

Estamos no momento certo para conversar sobre mediação, conciliação, arbitragem e, principalmente, sobre compreensão de que regras contratuais são criadas nos contratos de saúde suplementar para garantir que todos os usuários tenham acesso a todos os procedimentos previstos em lei e nos contratos.

Precisamos utilizar a boa-fé das partes como fio condutor para solução de conflitos no âmbito dos contratos de saúde suplementar. Estão todos convidados a realizar essa reflexão: como solucionar conflitos tendo a boa-fé como indicador de condutas a serem adotadas?

¹ Judicialização da saúde dispara e já custa R$ 1,3 bi à União. Pesquisa Insper. Disponível em: https://www.insper.edu.br/conhecimento/direito/judicializacao-da-saude-dispara-e-ja-custa-r-13-bi-a-uniao/. Acesso em 31 de julho de 2020.

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